segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Meu texto no Silva #2

Caríssimos: como são poucos os que têm o prazer de receber o jornal experimental editado por Ricardo Lísias, republico abaixo o artigo que escrevi (no calor dos fatos em setembro de 2011) para o Silva #2, saído no final de 2011, dobrado e embalado num saco de pastel. Lá vai, para quebrar um pouco o silêncio deste Caderno tão esquecido pelo seu dono...



Lutas - de classes?

Todos agora se acostumaram a encontrar nos jornais, nas revistas, nos telejornais e nos portais da internet imagens um tanto quanto inusitadas. Grupos de jovens, velhos, mulheres, crianças, todo tipo de gente empunhando bandeiras, gritando, sangrando, ocupando praças, derrubando monumentos, ostentando as causas e as armas mais variadas – da Grécia a Síria, de Portugal e Espanha ao Egito, da Inglaterra ao Canadá e ao Chile, é cada vez mais comum ver gente protestando.
Ora mais organizado, ora com todos os problemas da espontaneidade e da revolta, cada protesto desses tem sido convenientemente considerado como algo isolado, como algo cuja razão é pontual e, portanto, deve receber uma solução pontual, antes policial do que política. Especialmente quando tais protestos ocorrem em países ricos, os manifestantes são apresentados como baderneiros, que desafiam a ordem em nome de interesses que não ultrapassam os de um “caso de polícia”.
É exemplar, neste ponto, a postura do primeiro-ministro britânico, que inicialmente não queria interromper suas férias (as mesmas que já haviam sido adiadas em razão do escândalo do tabloide News of the World...) e, depois, defendeu que a solução passaria pelo bloqueio das redes sociais: “Estamos trabalhando com a polícia, os serviços de inteligência e a indústria para ver se seria correto interromper a comunicação das pessoas via websites e serviços quando soubermos que eles estão conspirando para a violência, desordem e criminalidade”. (A propósito, vale remeter ao artigo “Ativismo versão 3.0”, de Alan Waldron – publicado em www.redpepper.org.uk e traduzido por aqui no número zero da revista Samuel.)
            No entanto, um observador um pouco mais atento já consegue perceber, pela forma insistente como tais conflitos têm brotado aqui e ali, que não se trata de algo a ser enquadrado na categoria da simples e passageira “perturbação social”. O nível de tensão que tais protestos atingiram em alguns países – ou até em vários países ao mesmo tempo – faz lembrar uma afirmação de István Mészáros no preci(o)so ensaio “A necessidade do controle social”: “A frequência sempre crescente com que os ‘distúrbios e disfunções temporárias’ aparecem em todas as esferas de nossa existência social e o completo fracasso das medidas e instrumentos manipuladores concebidos para enfrentá-los são uma clara evidência que a crise estrutural do modo capitalista de controle social assumiu proporções generalizadas”[1]. É disso que se trata?
Tudo indica que sim – cada vez é maior a dificuldade para amarrar as pontas desses “desarranjos sociais” e fazer as pessoas “voltarem para casa”, pelo fato de se tratar em grande parte de pessoas que não têm para onde voltar, não têm nada a perder, como restou brilhantemente sintetizado na charge de El Roto sobre um provável diálogo entre autoridades políticas: “– Los excluídos se están rebelando. – Despidalos! – No hay manera, no tienen trabajo. – Córtenles las ayudas! – No podemos, no reciben ninguna. – Derriben sus casas! – Imposible, no tienen. – Entonces, estamos perdidos!”.
É difícil afirmar se – e em quanto tempo – a persistência desses conflitos terá força para evidenciar que, de comum, todos eles têm, lá no fundo, “defuntos” como o conflito capital-trabalho, a luta de classes, a exploração estrutural própria da sociedade capitalista. Mas já é seguro apostar que, em meio a tais protestos, deve-se disseminar mais rapidamente a convicção de que a universalização do capitalismo não significa a universalização de seus aspectos positivos. Pelo contrário. Em outras palavras, ficará mais evidente que, sob a lógica do capital, não é possível separar os dois lados da moeda: riqueza (concentrada) e miséria (crescente). Ou mesmo as duas faces do iPad: na loja, a tecnologia mais admirável; na fábrica, as condições mais desumanas.
Para o Brasil, como não são poucas as ironias do capital, o momento em que talvez estejam mais evidentes os nervos do sistema em crise – estrutural, profunda, generalizada – encontra o país surfando uma densa onda (e é inevitável ecoar a famigerada metáfora da “marola”) de otimismo, que arrasta os problemas com saúde, educação, violência, miséria, desemprego etc. – que estão muito longe de desaparecer – para debaixo do tapete, de modo que os enfrentamentos que deles resultam têm mínimas chances de ganhar corpo, conjunto. Agora, pelo contrário, é muito mais relevante que estejamos até mesmo exportando turistas-consumidores para os países ricos do que o fato de a morte de militantes dos direitos humanos pelo Brasil ter-se convertido numa forma barata de apagar focos de incêndio social contra as condições historicamente injustas de produção e distribuição da riqueza social.
            Não é por acaso que, neste mesmo momento de empolgação quase unânime com os índices sócio-econômicos do Brasil, capas de revista e editoriais dos jornalões já estampem – melhor: comemorem – que o MST “não é mais aquele”, afirmando-o (na verdade, não apenas o próprio MST, mas todos os movimentos de luta por reforma agrária) soterrado pelos programas sociais dos governos Lula e Dilma e com suas principais lideranças tendo sido cooptadas por tais governos.
            É muito significativo que os ataques ao MST tenham voltado, porque o MST é o temível irmão mais velho dos movimentos sociais que poderiam surgir pelo país e tem profundo parentesco com as lutas dos excluídos – sejam quais forem – pelo mundo. O tipo de motivação que incendiou o MST nos anos 1980 é da mesma natureza daquela que tem feito tantas pessoas, nos mais variados contextos atuais, buscarem alternativas coletivas de solução dos problemas que escapam das soluções individuais.
Para identificar tais semelhanças na história do MST, basta reparar o discurso idêntico da imprensa e das autoridades para tratar do movimento social dos trabalhadores rurais brasileiros – negando-lhe, de pronto, o status de movimento social – e o que se diz dos jovens que protestam pelo mundo, um discurso recheado de qualificativos que vinculam a reivindicação social à esfera policial: “baderneiros”, “desordeiros”, “bandidos”, “vagabundos”, “arruaceiros” etc.
Não é demais lembrar a advertência feita por Marx, diante da Comuna de Paris, em 1870: “A civilização e a justiça da ordem burguesa aparecem em todo o seu pálido esplendor sempre que os escravos e os párias dessa ordem se rebelam contra seus senhores. Então essa civilização e essa justiça mostram-se como uma indisfarçada selvageria e vingança sem lei. Cada nova crise na luta de classes entre o apropriador e o produtor faz ressaltar esse fato com mais clareza”[2].
Pois é. No momento em que escrevo este texto, bancários fazem greve em todo o Brasil, professores fazem greve – e apanham da polícia – em São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza. Há greve também nos Correios. Há pouco, greves chegaram a mobilizar 160 mil trabalhadores nas obras da usina de Jirau (Rondônia). Contra os trabalhadores, um Judiciário cada vez mais dedicado a inutilizar o direito de greve, fazendo-o sucumbir sob exigências e punições tão despropositadas quanto severas.
A importância que tais fatos têm separadamente não rivaliza com os traços que sobressaem quando nos dedicamos a perceber as conexões entre tais movimentos, dentro e fora do Brasil, o que nos permite imaginar a face política da Terra com cores muito mais fortes do que o atual otimismo brasileiro faz crer. Certamente, sob os discursos e as intenções tão díspares dos grupos que têm animado esses protestos, há de comum, ao menos, certa “intuição anticapitalista” (Ricardo Antunes).
Quem assiste hoje ao presidente norte-americano tendo que convencer os credores e investidores de que seu país não representa um risco para a economia mundial e vê um “movimento social” formar-se em Wall Street; quem lê sobre os suicídios de trabalhadores nas empresas privatizadas da França e nas fábricas de alta tecnologia da China; quem se espanta diante das catástrofes ambientais e da perspectiva de que outras venham a acontecer em breve; quem atenta minimamente para os fatos de ontem e de hoje começa a entender, de modo radical, o que pode significar a frase “tudo que é sólido desmancha no ar”, de 1847. E não será, por exemplo, o grito “sou agro” que impedirá que tal dinâmica atinja nossa concentradíssima (e hoje tão blindada) estrutura agrária. Faça a mídia quantos funerais fizer para as lutas sociais.



[1] O texto original é de 1971. Sua edição mais recente em português está em István Mészáros, A crise estrutural do capital. SP: Boitempo, 2009, pp. 47-74.
[2] Karl Marx, A guerra civil na França. Trad. Rubens Enderle. SP: Boitempo, 2011, p. 72.

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